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No novo cangaço, um Lampião da Rima

Atualizado: 4 de ago.

No novo cangaço, um Lampião da Rima Vida e arte se misturam na obra do Neguinho Gabriel



Gabriel Rodrigues Silva Santana, mais conhecido como NG Lampião da Rima, 26 anos, filho de Jaciara de França e Gabriel Gomes, é um rapper que vem se destacando no cenário sergipano. Nascido no dia 29 de setembro de 1997 em Olinda-PE, foi em Sergipe que Neguinho Gabriel (vulgo utilizado por ele para pixação) se tornou quem é.


NG chegou a morar por curtos  períodos nos municípios de Glória, Dores, Nossa Senhora do Socorro e Maruim, mas foi em Aracaju, mais especificamente no Conjunto do Inácio Barbosa e na Rua Ptolomeu, Beco da Caçola, que ele passou a maior parte de sua vida. O Santa Maria, onde o rapper mora hoje, começou a fazer parte da sua história ainda muito jovem, a mãe e a tia de Gabriel moravam no bairro, o que o fez crescer transitando entre o Inácio Barbosa e o Santa Maria.


“Muitas paradas fortes aconteceram aqui. Eu também conheci muita gente. Eu conheci Lincoln, eu conheci Luan, Juliana e Camila”, conta Gabriel, ao se referir aos amigos e companheiros do Santa cena. 


Aos 15 anos, Gabriel começou a fazer rima. Seu primeiro freestyle foi Santo Amaro das Brotas, cidade em que morava, mas seu nome artístico só surgiu cerca de cinco anos depois, em 2017, após o rapper se tornar campeão, pela primeira vez, da Batalha do Cangaço, uma batalha de rap sergipana. 



NG Lampião da Rima canta sobre a vida do jovem e da jovem negra da periférica. (Foto:arquivo)


Um cara amigueiro, mas reservado


Amante de churrasco e torcedor assíduo do Sergipe,  de vez em quando Gabriel costuma jogar bola e tomar cerveja com os amigos. Questionado se joga bem, em tom de brincadeira ele responde que “jogar bem soa muito forte”, mas que sabe “tocar uma bola e fazer uma raiva pelo menos”. 


Apesar de fazer amigos com facilidade, ele costuma filtrar as pessoas que fazem parte da sua intimidade. Antes de tomar esse cuidado, o rapaz passou por algumas decepções. “Nem todo mundo quando vai lhe ferrar vai estar teu nome lá: Eu vou fazer isso. Chegam de mansinho. Assim acontecem as decepções”, explica sobre o motivo de não receber todo mundo em casa.


De acordo com alguns amigos, Gabriel é teimoso e um tanto cabeça dura, quando tem algo na sua mente, não abandona com facilidade. O grafiteiro Dalvam Dext, que está entre os amigos e incentivadores mais próximos de Gabriel, conta também que ele pode ser um pouco ‘estourado’, mas que mesmo assim desconsidera as diferenças.  “Ele explode quando quer fazer alguma coisa e sai errado e as formas dele falar as pessoas não compreendem, mas isso a gente vem trabalhando, vem conversando. Além disso, ele é vermelho(Sergipe) e sou azul(Confiança), mas isso nunca impediu essa amizade crescer. Pra mim ele é um dos grandes nomes de artista da nossa geração”.


Outro que está entre as amizades mais próximas do NG é o grafiteiro Boom. Os dois se conheceram nas batalhas de rima. “E eu ia sempre fazer batalhas, e nesse dia eu cheguei e vi ele de canto quieto. Aí eu chamei ele pra fumar um, e nem sabia que ele ia batalhar. Ele falou, mano, acho que é minha vez, aí foi e começou a rimar e tirou onda na rima. Eu falei, rapaz, o moleque é bom. Aí pronto, começamos a trocar ideia e de lá pra cá, a gente só anda junto”, diz Boom. 


Por meio do realismo, Dext costuma retratar pessoas que o inspiram, NG já foi retratado várias vezes. (Foto: Reprodução-Instagram)


A música como uma arma de combate


O rap é utilizado como uma arma para a crítica à sociedade desde o seu surgimento. É comum que pessoas periféricas utilizem o ritmo para as reivindicações de seus direitos. No Brasil, através da popularização da cultura hip-hop na década de 1980, o gênero vem tratando de temas como racismo e desigualdades. 


Gabriel sempre teve contato com o rap, mas conhecia apenas clássicos, como Sabotage, Racionais, Alex NSC. Em 2017, época em que morava no Ponto Novo, Gabriel fez parte do grupo de rap Os Novo Cabeços, junto com os colegas Adriel, Mc Barriguinha e Otávio(2016). Os novos Cabeços tinham canções que questionavam a maneira de a sociedade funcionar, como ‘moleque cruel', ‘sistema VS favela’ e ‘visão de rua’. 


Ao longo dos anos, o artista foi ganhando reconhecimento no estado, em  2022, NG Lampião da Rima se apresentou pela primeira vez no Festival de Artes de São Cristóvão(FASC), e no ano seguinte, repetiu o feito. No final de 2023, NG gravou o seu primeiro DVD com recursos do Edital de Economia Criativa do Sebrae Sergipe. 


A gravação contou com a participação da cantora e compositora Anne Carol. A artista conheceu NG em uma roda de poesia de um sarau, onde ele fez um freestyle que chamou atenção dela.  A partir desse momento, Anne e NG, construíram uma amizade duradoura, com um afeto muito forte.


“A gente dá força um para o outro sempre”, revela Anne Carol. (Foto:Ilmara Costa)


“Quando a gente se encontra é uma alegria, é um fortalecimento, é um afeto, é uma parceria. Por mais que a gente não tenha essa rotina de estar conversando todos os dias, a gente tem uma conexão muito forte. Eu mulher e ele homem negro,  a gente se reconhece um no outro”, dia Anne. 


A artista disse ainda que Gabriel é extremamente carinhoso e atencioso. E que sempre está presente e disposto a trabalhar e pelo que acredita. “Fora da música, é um amigo verdadeiro, alguém em quem confio e me identifico muito, tanto na arte que produz quanto no que expressa. 


As letras do NG abordam o dia a dia da periferia ou como ele diz ‘O novo Cangaço’, que seria a vivência da periferia com a esperança de dias melhores. O rapper diz gostar de todas as suas obras, mas tem um apreço maior pela música, "Jovem Negro" que foi feita em parceria com o beat de Eufórico. 


NG já tinha outras músicas e ideias, quando o beatmaker lhe mostrou o trabalho. ”Eu estava no estúdio, cheio de ódio com os bagulhos, por isso que eu já cheguei carinhoso, já no primeiro verso. Tenho um carinho especial por ela, porque é um momento de guerra. E tipo, não estou pedindo licença, eu não estou pedindo por favor”, diz.



Jovem negro fala das dificuldades enfrentadas diariamente por pessoas periféricas 


Nasce um novo campeão, o NG Lampião da Rima


Também em 2017, Gabriel conheceu Manu e Dani DK. Na época, as meninas tinham um grupo de rap chamado Artigo 63, que era composto por JJujuba, Dani DK, Manu e Salva. O jovem estava na praia da Cinelândia com alguns amigos quando encontrou as meninas do Artigo 163. 


“Tava eu, finado Josh, Pedrinho, Joab, que é um dos manos que é inspiração pra mim. O moleque é foda, Joab não canta, mas faz um freestyle que parece música. Absurdamente incrível, ele é foda. Dani estava com o braço quebrado, e Manu com o violão. Começamos a trocar ideia fazer freestyle na base do violão. Falei, que nunca tinha conhecido umas gurias tão pra frente, talentosas, e elas disseram que também nunca tinham trombado um neguinho cabuloso, a admiração foi recíproca”, conta.


Depois da praia, quando o grupo chegou ao terminal do D.I.A, acontecia a Batalha do Cangaço(seletiva estadual para a etapa nacional), uma batalha de rap.  NG não conhecia quase ninguém da cena, pois era reservado, e não costumava frequentar o rolê, mas Manu sugeriu que NG batalhasse, ele respondeu que não entendia de batalha e não conhecia ninguém. A rapper insistiu e até  pagou a inscrição dele.


“Os únicos cinco reais que ela tinha para pagar a passagem delas, que na época era dois e cinquenta, ela pegou, e pagou a minha inscrição. Aí eu entrei no bagulho como talvez, tá ligado? Porque as vagas já estavam preenchidas. Três manos desistiram, aí entrou Ciente, outro mano e eu”, conta o rapper.


 Quando NG, que na época era bem magro e já tinha uma voz potente  pegou o microfone, os nomes favoritos para ganhar o título de campeão estadual, olharam desconfiados para ele. O rapaz passou por cada etapa e  chegou na final desbancando os favoritos. Ao sagrar-se campeão, Neguinho Gabriel foi batizado por Renato MKM de Lampião da Rima, surgindo o nome que ele utiliza até hoje. 


Fé nos LA e nos orixás 


Uma das frases mais repetidas nas músicas do NG Lampião da Rima é “Fé nos LA”. É uma maneira de expressar gratidão e apoio a Crew de graffiti Laboratório da Arte, fundada em 2009 por Dalvam Dext, Bruno Mago e outros grafiteiros. Dext é, além de amigo, compadre de Gabriel. Os dois nutrem carinho e admiração um pelo trabalho do outro. O rapper nunca grafitou, mas acompanha o trabalho de Dalvam, que o incentiva desde o início de seu trabalho.


“Foi quando ele me apresentou a cena de grafite e me disse: mano, é uma das paradas que você precisa, também fazer com a galera. Conheça a família Laboratorio da Arte, para que outros irmãos e outras irmãs vejam. Não só cantores, mas também grafiteiros, tatuadores, artistas que produzem arte independentemente. E aí foi quando eu comecei”


"Quero ver os meus sonhando alto e desfrutando do mesmo que eu. Assim saberei que venci. A periferia também tem que desfrutar do melhor", diz Neguinho Gabriel, o Lampião da Rima. (Foto: Reprodução redes sociais)


Além da arte na periferia, o Candomblé também foi um espaço de identificação para  Gabriel. Ele conta que quando passou a frequentar o terreiro e conversar com o preto velho, foram reveladas várias coisas que tocaram o seu íntimo. “Ali eu senti uma energia muito forte por aquilo, me senti representado e vivo. Através do Candomblé as coisas foram começando a se dar forma”, ressalta Gabriel em referência aos últimos anos da sua vida.


Gabriel fez seu jogo de búzios,  para saber quem era meu orixá de cabeça. No candomblé, Orixá de cabeça é aquele que assume a frente do ori(cabeça) do adepto. O orixá de cabeça passa a cuidar dos seus filhos dando conselhos, reagindo e pode até tomar o corpo do adepto em situação de vulnerabilidade, a fim de proteger dos perigos. 


“E não, a gente não faz pacto com o demônio, a gente não doa o nosso sangue, como falam por aí com intolerância religiosa e não, Exu também não é o diabo, nem muito menos um orixá guerreiro. Quando você entra pro Candomblé o primeiro passo é que você aprende de lição, moral e de vida: vai trabalhar com a verdade”, Gabriel faz questão de declarar sobre pensamentos intolerantes.


Santa Maria


O Santa Maria é o lugar onde NG Lampião da Rima criou raízes. Como passou parte de sua vida frequentando o bairro, muitas amizades foram feitas e a localidade adotada como parte dele. Além de lugar de vivências, o Santa é também espaço de trabalho e de valorização. NG é co-fundar a produtora Santa Cena, com a finalidade de mostrar o potencial do bairro. 


NG conta que a ideia de fundar a produtora se deu após uma conversa com Luan sobre a necessidade de fazer com que a sociedade aracajuana veja que o Santa Maria não é sinônimo de problemas sociais e de infraestrutura.



No Santa Cena(banca de rap) ao lado de Luan, Camilla, Precioza e outros apoiadores, NG investe no sonho de artistas periféricos.

(Foto: Tatiane Macena)


Além disso, o rapper também é responsável por idealizar a Batalha do Santa que tem por objetivo revelar novos talentos e incentivar a prática da batalha de rima no Santa Maria.  Para ele, o bairro Santa Maria tem um potencial não reconhecido. “O Santa Maria é a terra. Esse aqui é um país. Aqui tem uma força absurda. Eu falo pra galera direto”, considera. 


Questionado se sabia o tamanho de sua influência, ele responde que sabe do seu “tamanho” e poder no Estado. “Eu tenho essa consciência, mas na minha quebrada aqui, na Terra Dura, me sinto Deus. E não tô falando sobre bagulho financeiro não, pô. É de nós estarmos na correria, pra organizar uma batalha, os caras pararem os corres que tiverem fazendo para colar junto, fechar com a gente”, afirma.


Sorrisos, lágrimas 


Apesar de ter consciência de sua força e influência, não só no bairro Santa Maria, mas em Aracaju como um todo, NG Lampião da Rima não se considera famoso, mas vitorioso. Ele tem esse pensamento pelo fato de ter uma vida atravessada por dores enfrentadas em sua infância e adolescência. Para ele, não lutar contra as batalhas do passado, é vencer a guerra.


Gabriel foi uma criança tranquila, brincalhona, inteligente e curiosa, mas teve que assumir responsabilidades desde cedo, e largar inclusive os estudos na antiga quarta série.  Mais velho de sete irmãos por parte de pai e seis por parte de mãe, o jovem conheceu a fome e foi obrigado ‘a se virar’. 


“Já passei fome na minha vida. Tô falando de passar fome, não é passar dois dias sem comer não, é você abrir o armário e ter só sal.  Eu já catei comida do lixo, catei reciclagem, já pedi esmola, pedi alimento de porta-em-porta, fiz limpeza de carro, Já vendi coisas no ônibus e outros corres. Se o crime é cabuloso, passar fome é pior, às vezes não é uma questão do que a gente quer, é o que mais fácil é o acesso, é o que resta e o que sobra para nós”, pontua.  


O rapaz enfrentou outras batalhas as quais ele afirma que a sociedade não entenderia.  “Vejo muita gente formada que paga de desconstruída, para frente, diz que entende, mas mano, entende não. Por exemplo, a gente tá aqui que mora no Santa Maria, a gente sabe o peso e a dor, quando alguém se refere a morar na Terra Dura, ou é da Terra Dura. A gente entende o contexto do bagulho”, afirma.


Como todo jovem preto, Gabriel sofreu discriminação racial. Em uma das situações mais extremas, foi acusado de cometer um crime quando nem mesmo estava presente. Na ocasião, cerca de 15 indivíduos brancos o agrediram verbalmente e fisicamente e quando a viatura da polícia chegou, apenas ele foi levado para a delegacia. 


“Os caras quebram minha prancha, me jogaram por cima de brita, dizendo que eu tinha roubado uma mulher um dia antes. O outro dizendo que eu tinha dado um tiro, um bagulho nada a ver com nada Sendo que eu estava com o meu pai lá no interior. Quando a polícia chegou, adivinha quem foi algemado? E não levou mais ninguém para a delegacia, nem quis saber”, desabafa Gabriel. 


Sonhos individuais e coletivos


Como estudou apenas até a quarta série, e quando tentou retornar à escola, através da educação de Jovens e Adultos(EJA), foi vencido pelo cansaço, Gabriel mantém o desejo de voltar a estudar. “Ou você trabalha ou você estuda. Eu era o cara mais novo da sala onde eu estudava. E quando virei pai, pensei em conquistar o mundo agora, para dar uma condição melhor aos meus filhos e pra mim também. Mas vou voltar, esse ano eu quero tudo”, declara. 


Pai de dois meninos, Kenai de 3 anos e Gregory, de 5 anos. O artista afirma temer somente duas coisas. “Escorpião e deixar as pessoas que eu amo. Só isso”. (Foto: @boersmafot)


O rapper diz que seu objetivo é ocupar o topo, mas não pretende conseguir o feito sozinho. “É como diz o ditado: Se você quiser ir rápido, vá sozinho; se quiser ir longe, vá em equipe. Se estamos trabalhando em um projeto com objetivos significativos, como o trabalho em um quilombo, é fundamental reconhecer a importância da colaboração e do trabalho em equipe. Não é sobre eles, nem sobre mim”, afirma o rapper sobre seus sonhos individuais e coletivos. 


Por Tatiane Macena


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