Camila Feitosa. Foto: Dan Lima
Fé, bom humor e leveza. É isso que a paratleta de halterofilismo Camilla Feitosa Oliveira passa para as pessoas ao seu redor. Com apenas 73 centímetros de altura, é capaz de levantar 2,4 vezes mais que o seu próprio peso (21 kg). Camillinha(para os mais íntimos) já ergueu 53 kg no supino. A mulher que encontrou no esporte uma maneira de superar obstáculos, lançou recentemente o ebook "A transformação que o esporte me proporcionou”, onde narra a sua trajetória de vida.
Camilla nasceu em Aracaju-SE, 16 de agosto de 1986, e logo foi diagnosticada com nanismo, uma mutação genética rara, caracterizada pelo encurtamento e atrofia dos membros inferiores e superiores. 17 anos, foi a estimativa de vida que a sua mãe, a técnica em enfermagem Maria Jeane recebeu, quando foi orientada a prestar bastante atenção naquela criança considerada frágil. Mal sabiam eles que aquela criança se tornaria um dia a mulher mais forte do Brasil.
Além do nanismo ou acondroplasia, que acomete um recém-nascido em cada oito a 10 mil nascimentos, camillinha também é portadora de retinose pigmentar, uma doença que surge quando as estruturas fotorreceptoras do olho (cones e os bastonetes) deixam de captar luz, prejudicando a formação da imagem pela retina.
Terceira filha de 6, não teve a presença frequente de seu pai na sua criação. Com dificuldades e ajuda da família, dona Maria criou Camilla e os irmãos. “Minha infância foi muito sofrida no sentido de privações. Lá em casa chegava a faltar até mesmo o básico, mas ela [a mãe] trabalhava muito para nos sustentar. Por isso ela não ficava muito tempo em casa”, diz ao relatar a falta de ter a mãe em casa acompanhando seus passos. Enquanto dona Maria Jeane trabalhava, seus filhos cresciam sob os cuidados de uma tia e da avó materna, auxiliadora e Aparecida (já falecida). Camilla resceu entre Aracaju, Carmópolis e Nossa Senhora do Socorro. “Foram muitas idas e vindas. Nós somos quase nômades", brinca, ela sorrindo.
Estudiosa, sempre está em busca de aprimorar os conhecimentos. Atualmente estuda artes visuais na Universidade Federal de Sergipe. “Sempre gostei de estudar, mas eu não havia idealizado o sonho de concluir um curso superior. Eu achava não ser possível devido às limitações impostas pela deficiência, mas hoje eu sei que eu posso”, conta a estudante que antes achava o feito impossível. “Eu me perguntava como ia fazer artes visuais se também tinha problemas de visão, mas hoje estou aqui quebrando mais um padrão”, relata Feitosa.
Camilla aproveitou a conversa comigo (essa aspirante a jornalista que vos escreve) para falar das limitações impostas às pessoas com deficiência. “Antes as pessoas com deficiência eram privadas de quase tudo, da convivência com sociedade como um todo. Até mesmo do convívio com seus familiares e de coisas que são essenciais para o ser humano, mas a sociedade precisa entender que uma pessoa com deficiência também é capaz. Nós também podemos pensar e tomar decisões”, ressalta a mulher.
Uma amizade importante
No grupo de conselho para pessoas com deficiência de Nossa Senhora do Socorro, conheceu o radialista Renato Machado, que é usuário de cadeira de rodas. A partir daquela amizade, um novo padrão de vida seria descoberto pela jovem. “Ele começou a me levar para todo evento que envolvia pessoas com deficiência. Foi naquela época que passei a ter contato com outros PCDs, pois até então eu não tinha. Então comecei a lutar para romper as barreiras impostas a mim pela deficiência”, conta Camilla.
Renato é grato a Camilla pelo reconhecimento, mas externaliza que ela é a única responsável pelo seu sucesso. “A Camilla sempre que dá uma entrevista me coloca como causador de seu desenvolvimento, mas eu gostaria de dizer para ela que a única pessoa responsável por isso. Camilla aprendeu a criar asas sozinha, ela é a única responsável por conseguir levantar vôo. Aquela mulher de pouco mais de 70 cm, já conquistou muita coisa e vai chegar ainda mais longe. Estou aqui torcendo por ela", diz Renato Machado.
Radialista Renato Machado
Dança
No ano de 2016, Camilla descobriu o gosto pela dança. A jovem entrou para o grupo de dança do projeto ‘Arte na Escola’, também de Nossa Senhora do Socorro, o qual geralmente faz apresentações no final do ano e é voltado para jovens e crianças de escolas públicas. Naquela época, um grupo de pessoas com deficiência, que Camilla fazia parte, foi incluído no espetáculo. Foi o seu primeiro contato com um tipo de atividade física. De vez em quando ela publica em suas redes sociais vídeos mostrando suas habilidades.
Esporte
Em 2018, Camilla tivera seu primeiro conato com o halterofilismo. Renato estava com um problema no ombro, então recebeu o convite para fazer uma visita no Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe (UFS), onde ele teria a possibilidade de treinar e fazer fisioterapia. O rapaz que convidou a amiga para acompanhá-lo.
“Ele sabe que eu topo quase tudo, e onde tem uma lata tocando eu vou. Principalmente se for para fazer o bem para um amigo. Ele me pediu para ir junto para que ele não desistisse, então eu fui”, relata Feitosa. Ela foi convencida a fazer o teste pelo professor Felipe Aidar. “Ele me disse que era possível e eu negando, relutei. Foi aí que ele me mostrou vídeos de pessoas com nanismo praticando halterofilismo, e eu topei”, conta Camillinha.
A então aspirante ao esporte ouviu atentamente as instruções do futuro treinador e incentivador, e colocou a mão na massa, ou melhor, na barra. Na ocasião, Camilla deixou todos perplexos, afinal somente a barra pesava 20 kg, e ela pesava pouco mais de 21 kg.
O professor já sentia o que poderia acontecer só de presenciar o desempenho de sua futura aluna. “Ele me disse que se eu me dedicasse poderia me tornar a mulher mais forte do Brasil e quem sabe a mulher mais forte do planeta. Eu duvidei mais uma vez. Pensei que fosse exagero, mas uma parte do que ele falou já se cumpriu”, conta a paratleta.
Foto: arquivo pessoal
Halterofilismo paraolímpico
Muitas pessoas acham, que é só levantar o peso, mas o esporte exige do halterofilista a execução correta da técnica, associada a movimentos de coordenação e concentração. No caso do halterofilismo paralímpico, há adaptações a depender da deficiência do esportista. Algumas pessoas são amarradas ao banco, outras, como é o caso da nossa perfilada, que por ter as mãos pequenas, utiliza uma faixa de punho.
É livre a participação de homens e mulheres que possuam deficiência nos membros inferiores (amputados e lesionados medulares) e paralisados cerebrais. Os atletas executam um movimento chamado supino, deitados em um banco. Cada competidor tem três tentativas. O maior peso levantado é considerado como resultado final. A modalidade segue as regras do World Para Powerfliting, vinculado ao Comitê Paralímpico Internacional (IPC).
O desafio para continuar treinando
Depois de três meses o seu companheiro de treino e aventuras, Renato, que era quem pegava e levava a Camilla para os treinos em seu carro, teve que deixar de frequentar as aulas. Camilla, que já estava amando praticar o esporte, temeu não conseguir ir mais aos treinos. “Era ele quem me buscava e levava em casa, então depois que ele saiu me bateu um desespero, pois não fazia ideia de como continuar”, relembra Camilla.
Como a paratleta não tinha condições de pagar alguém para que a levasse para os treinos todos os dias, seus amigos começaram a se mobilizar. Inicialmente, a usiária de cadeira de rodas, Maiara passou a sair de sua casa no conjunto Marcos Freire III e ia até a Piabeta, para buscar Camilla, e juntas as mulheres seguiam de ônibus até o Rosa Elze. Mas a Maiara também tinha suas questões e deixou de fazer o percurso.
Foi quando outro colega de treino topou o desafio. Era o também usuário de cadeira de rodas, Afonso que se encarregava da missão de pegar Camila “Quando a Mayara não pode mais ir, os meninos começaram a se revezar. Me lembro de quando o Afonso me levava em casa de triciclo. Eu ia atrás dele levando a mochila que era maior que eu. Era uma aventura só”, diz ela, com bom humor ao lembrar da cena.
No entanto, os horários de Camilla passaram a se chocar com os de Afonso, que por estar estudando chegava mais tarde nos treinos. Naquele momento, a Luciene, responsável pelo convite que resultou na entrada de Camilla no halterofilismo, se dispôs a esperar a paratleta no terminal do Maracaju. O que fez o desespero bater à porta da Camilla novamente, afinal alguém precisava fechar as portas da casa e a colocar no ônibus. “Para chegar até o terminal eu tinha que aguardar a minha tia chegar do trabalho, pois, por causa da minha altura, não dava para fechar as portas nem subir no ônibus”, diz a esportista.
Ela passou a aguardar a tia chegar do trabalho para que ela a acompanhasse até o ponto, e em seguida a colocasse no ônibus. Quando chegava até o terminal, Luciene se encarregava da função. “Na volta a gente fazia o inverso, ela me colocava no meu ônibus. Quando estava chegando em casa ligava para a minha tia que me buscava no ponto”, narra Camilla, que depois de ganhar confiança e conquistar sua autonomia, começou a seguir viagem no coletivo sozinha. A paratleta conta com a ajuda de um sobrinho para colocar no ônibus.
Em 2019, com bastante dedicação, Camilla Feitosa se tornou vice-campeã brasileira e também a mulher mais forte do Brasil. Ela é um exemplo de um ser iluminado e segue superando os seus próprios limites, sempre focada em seus objetivos. A pequena grande mulher, que é como ela se intitula em sua conta de Instagram, é uma colecionadora de medalhas e sorrisos.
Fotos: arquivo pessoal
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