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Foto do escritorTatiane Macena

Apesar de atuarem como agentes ambientais, catadores de recicláveis não são reconhecidos

Atualizado: 4 de ago. de 2024

“Se não fosse a gente, muitos bueiros estariam entupidos. Nós ajudamos a diminuir a quantidade, e isso já é um benefício porém muitos não enxergam isso”



Às 12:40 da tarde, horário em que a maioria das pessoas tenta fugir do sol, Juliana dos Santos, 34 anos, mãe de três filhos, sai em busca de materiais recicláveis, para a manutenção da sua casa. Quatro vezes por semana, nessa faixa de horário, quando a onda de calor e a falta de árvores despertam uma sensação térmica de 40º, ela prepara a carroça e segue pelas ruas de Aracaju. Seu companheiro, Fábio José dos Santos, que também é catador, segue em outra direção com o mesmo objetivo. Eles se dividem por três dias da semana, exceto aos sábados, quando coletam juntos. 


Há quatro anos, Juliana se reveza entre afazeres domésticos e a coleta de material reciclável em condomínios. Pela manhã, enquanto José está nas ruas catando reciclagem, ela trabalha em casa. A jovem dá comida para os animais, lava louça, varre casa, faz almoço, encaminha os filhos para a escola, etc. “Tem as coisas dos meninos pra resolver, e também tenho que dar banho e comida para os animais, então só vou à tarde. Eu deixo tudo organizado, enquanto ele cata pela manhã eu vou à tarde”, descreve. Como o casal tem somente uma carroça e três cavalos, José trabalha com uma bicicleta, e para não sobrecarregar os bichos, Juliana administra os dias que cada animal vai às ruas.


Nos dias que não sai, a jovem catadora se encarrega de separar o que foi coletado anteriormente.  Sozinha, ela reúne em média 40 quilos por dia, o que antes lhe rendia cerca de R$ 1 mil mensais, no entanto, o valor dos materiais caiu bastante, e a jovem precisa coletar o dobro para conseguir a metade do valor. Foi diante dessa circunstância, que José e ela decidiram fazer o trabalho que antes realizavam juntos, de maneira separada. “Hoje está mais difícil de encontrar material, então a gente se divide, porque enquanto ela vai num condomínio eu já estou em outro”, diz Fábio José dos Santos. 



Em meio ao buzinaço e olhares tortos, o casal de catadores segue pelas ruas de Aracaju em busca do sustento. (Foto: Tatiane Macena)


A reciclagem sempre esteve presente na vida de Juliana, que conheceu o trabalho através da sua mãe, Marilurdes dos Santos. Já adulta, Juliana conheceu o pai de seus filhos mais velhos (Kaue e Caio), com quem conviveu por 12 anos. Vítima de violência doméstica, resolveu terminar o relacionamento e ir em busca de uma vida melhor para ela e para os dois filhos. Nesse momento, a jovem começou a trabalhar como garçonete em bares, até que conheceu uma cooperativa de reciclagem e voltou a se dedicar ao trabalho. Na cooperativa, ela e José se conheceram e iniciaram um relacionamento, que resultou no filho mais novo do casal, o Samuel. 


Após um tempo trabalhando na cooperativa, José decidiu sair para trabalhar como catador individual. O rapaz convidou Juliana, que na época era sua namorada, para acompanhá-lo. Ela sentiu-se tentada, mas não queria arriscar sair da cooperativa para as ruas, afinal, ali havia certeza de um retorno financeiro no final do mês (ainda que pequeno), e também do direito a benefícios previdenciários do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Além disso, a cooperativa disponibilizava itens de segurança e o ambiente de trabalho era mais organizado e agradável, pois os catadores se entendiam e não tinham preconceitos para com os outros. Com um tempo, ao ver que o rapaz havia de fato aumentado a renda, Juliana resolveu fazer uma nova experiência. 


Antes de sair da cooperativa, fez um planejamento, pois não queria voltar a coletar com um carrinho de mão, como fazia no início da sua trajetória. Então, a profissional da reciclagem adquiriu uma carroça e um cavalo, de quem ela cuida com bastante zelo. Inclusive, Juliana conta que sofreu preconceito por parte da vizinhança, que a denunciou para a polícia ambiental. Os policiais  fizeram uma vistoria no imóvel da família e nada de irregular constatou, na verdade, os agentes elogiaram a organização do lugar e o cuidado da jovem com seus animais (Esmeralda, Diamante e Pérola). Nas ruas o preconceito é ainda maior. As pessoas não enxergam os catadores de reciclagem como agentes ambientais. 


“Às vezes eu estou ali mexendo no tonel e as pessoas que passam olham para mim, colocam a mão no nariz e cospem no chão. Até xingamentos direcionados a mim, eu já recebi. Esse tipo de preconceito me machuca, sabe? Mas eu não guardei dentro de mim, porque eu tenho orgulho do que eu faço”, desabafa Juliana, que mesmo tendo orgulho da função, não quer que seus filhos repitam a sua trajetória. “Às vezes por não ter com quem deixar, meu filho me acompanha. Ele me diz que tem orgulho de mim, mesmo eu sendo catadora e me pede para deixá-lo ajudar, mas eu não permito, porque além de ser perigoso, quero que meus filhos estudem e tenham uma profissão que a sociedade não olhe com tanto desprezo”, comentou.


Ela conta que, no trânsito, as buzinas e reclamações não param. “Às vezes quando eu estou parada na carroça, eles gritam para sair da frente. A carroça é um veículo também, e é ele que uso para ter o pão de cada dia. Me entristeço com as pessoas que querem ser melhores do que os outros”, apesar do preconceito, Juliana tem consciência da importância ambiental do trabalho de reciclagem. “O meu trabalho é digno, honesto e ajuda na limpeza ambiental. Se não fosse a gente, muitos bueiros estariam entupidos. Como ainda acontece de entupir, nós ajudamos a diminuir a quantidade. E muitas vezes o que entope é o mesmo item que eles descartam inadequadamente. Isso já é um benefício para a sociedade, porém muitos não enxergam isso. O que recebemos é lama e xingamento”, explica Juliana dos Santos. 


De acordo com ela, uma das piores sensações relacionadas ao trabalho  ocorreu na presença de seus filhos e foi tão humilhante que ela quis parar. “Passaram dois rapazes por mim. Eles olharam com nojo para mim e para meus filhos, nos chamaram de fedorentos e falaram um monte de palavrão. Eles nos chamaram de nojentos, nos desmerecem o tempo todo, colocaram a mão no nariz. Eu passo por isso com frequência. Naquele dia eu queria revidar mas me segurei. Depois daquela humilhação, apesar de amar o meu trabalho, eu quis parar, mas pedi forças a Jesus para continuar trabalhando”, lembra Juliana.


Após a coleta nas ruas, Juliana e José separam o material coletado de acordo com o tipo e por cores. (registro: Tatiane Macena)


Catadores de reciclagem como agentes ambientais


Os catadores de recicláveis são responsáveis por recolher a maior parte dos materiais reciclados e contribuem para o meio ambiente, através da economia de matéria prima industrial. Os catadores são os agentes responsáveis pela coleta de 90% dos materiais reciclados no Brasil. “Eles tão preservando o planeta todos os dias, mas não tão sendo remunerado como devem, não tão sendo respeitados como merecem”, considera Thiago Mudando, artivista (como ele se denomina) e idealizador do movimento Pimp My Carroça, movimento que busca tirar os catadores de reciclagem da invisibilidade.


De acordo com um levantamento do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), cerca de 800 mil pessoas vivem da reciclagem no Brasil. Sem os catadores, a reciclagem seria inviabilizada, pois os brasileiros não costumam separar os recicláveis dos orgânicos, o que, consequentemente, faz com que toneladas de lixo cheguem diariamente nos aterros sanitários do país. De maneira qualificada, esses agentes ambientais identificam, separam os recicláveis dos dejetos, fazem uma destinação responsável dos resíduos produzidos pela população, e ainda fazem a economia circular. 


Catadora de reciclagem há 16 anos, Juliana explica que nem todo material reciclável tem reciclabilidade na indústria.


Em 2021, 370 toneladas deixaram de ir para os aterros, pois foram recuperadas, a maior parte passou pelas mãos de catadores invisibilizados, como José e Juliana. A função desempenhada pelo casal é de extrema importância para a preservação do meio ambiente e para muitos brasileiros, representa uma possibilidade de inclusão num mercado de trabalho excludente. No Brasil, em 2002, a profissão foi reconhecida pelo Ministério do Trabalho, no entanto,  a má remuneração, atrelada a falta de direitos sociais e rejeição,  causa nos trabalhadores da categoria,  uma sensação de impotência.


Somente em 2022, 82 milhões de toneladas de resíduos foram geradas aqui no Brasil. Segundo dados da Abrema (Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente), deste montante, apenas  4% foi reciclados. A reciclagem ajuda a preservar recursos naturais como água, árvores e insumos em geral. De acordo com o Atlas Brasileiro da Reciclagem, entre os anos de 2019 e 2021, 67% do papel produzido no país retornaram para o processo produtivo. 


 Reciclar também é empreender


Para a presidente da Associação de Mulheres Empreendedoras da Paraiba(AME-PB), Fany Miranda, os catadores de reciclagem também são empreendedores. “Se ela for à manicure, já vai estar investindo no trabalho de outra pessoa e aquilo é um ciclo, é economia circular. O investimento vai e volta. A pessoa acha que só empreende quem tem uma loja, mas a partir do momento que você se sustenta com aquilo e administra seu dinheiro, você já é uma empresária”, afirma Fany Miranda, que fala sobre a importância dos catadores para a sociedade brasileira.


“Existem pessoas privilegiadas lá naquela ponta, que desprezam os catadores. Deveria ser prático e normal para todo mundo separar os recicláveis de não recicláveis. Eles não respeitam o trabalho dos outros, sendo que os catadores pegam o que esse pessoal joga na rua e está salvando o meio ambiente e ainda está salvando sua vida financeira e da sua própria família”, completa a presidente da AME-PB.


Juliana não quer saber de trabalhar com outra coisa a não ser a reciclagem. “Sabe o que é você trabalhar quando você quer sem se preocupar com desconto de seu salário e sem pressão? Eu não quero mais trabalhar para ninguém e sentir pressão psicológica. Então, só saio daqui só se for para o meu negócio, e ainda assim não penso em parar”, salienta.  José também prefere a reciclagem do que outra profissão. “Já tentei trabalhar com outras coisas, mas particularmente eu não gostei. Prefiro catar reciclagem”, diz ele.


Depois que o casal decidiu se dividir para otimizar o tempo de trabalho, a quantidade de material recolhido aumentou. (Foto: Tatiane Macena)

Um trabalho coletivo 


Mensalmente, a Cooperativa dos Agentes Autônomos de Reciclagem de Aracaju (CARE) recolhe em média 50 toneladas de material reciclável da capital sergipana. A cooperativa nasceu por causa de uma intervenção do Ministério Público do Estado de Sergipe, incentivada pela campanha ‘Criança no lixo nunca mais’, um projeto da UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) para o combate ao trabalho infantil.  A ideia era retirar as crianças da antiga ‘lixeira da Terra Dura’, no entanto, para que as crianças fossem retiradas de lá, era necessário que toda a família deixasse de frequentar o lugar.


Então, surgiu a ideia da criação de uma unidade produtiva, que atualmente se chama  Cooperativa dos Agentes Autônomos de Reciclagem de Aracaju (CARE). Naquela época, 300 famílias viviam e tiravam o sustento do lixão. Atualmente, a CARE atende a 63 cooperados, dos quais muitos trabalham com reciclagem desde o tempo da ‘lixeira da Terra Dura'. Na cooperativa, é feita a seleção dos materiais, que são separados e posteriormente prensados, e só então vendidos para a indústria. No final do processo, com o valor arrecadado na venda,  as despesas da cooperativa são pagas e o restante do valor é dividido entre os cooperados.


Inicialmente, a CARE fazia apenas a mitigação da quantidade de materiais de Aracaju, que vão para aterros e lixões, mas a partir de parcerias com alguns órgão públicos, a cooperativa passou a ter condições de comprar materiais de catadores individuais. Parte dos materiais que chegam à cooperativa, vem da coleta seletiva da cidade, advinda de condomínios, residências, empresas e órgãos públicos que ligam para a CARE, que se encarrega de buscar o resíduo. Com a interação dos catadores individuais, o total da arrecadação tende a aumentar. 


Na cooperativa, depois de separado, o material é prensado e depois encaminhado para as indústrias. (Foto: Tatiane Macena)


Juliana e José resolveram passar a vender os recicláveis para a cooperativa, que por receber o material já selecionado, repassa para os catadores um valor a mais do que os ferros velhos. “A gente separa por tipo e depois por cor, porque fica mais fácil o processamento da indústria. E aí quando vendemos para a cooperativa, eles repassam para nós alguns centavos a mais por cada quilo de material arrecadado. No final de tudo, o valor pago compensa mais. E eles também nos cedem kits de segurança como luvas e garrafa de água”, descreve Juliana dos Santos. 


O presidente da Care, Dárcio Ferreira, diz que apesar de fundamental,  apenas uma pequena parcela da sociedade apoia o trabalho desenvolvido pelos catadores de recicláveis. “Nem todo mundo abraça a cooperativa, e a gente necessita de colaboração social, que as pessoas separem o orgânico  de recicláveis”, pede Dárcio, que também aponta para a necessidade de manter o material seco. 


“Alguns tipos de plástico não têm reciclabilidade, e ainda tem algumas embalagens como as de biscoito com uma parte iluminada e vários outros tipos de copo descartável e às vezes vêm na coleta sujos ou molhados”, afirma. Dárcio falou ainda sobre o valor do material reciclável, que desde o início de 2023, vem oscilando para baixo, o que prejudica catadores e catadoras de todo o país. 


Catadores do país inteiro são impactados pela baixa do valor dos recicláveis


Por: Tatiane Macena


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